INTRODUÇÃO.
Buscaremos nesse artigo compreender a relação do ser humano com o Sagrado e os possíveis desdobramentos desta relação, sobretudo nos conceitos atribuídos ao Sagrado por parte daqueles que devotam sua fé num ser para além das compreensões naturais.
Abordar este tema torna-se necessário para que se faça uma reflexão sobre as reações humanas sobre Sagrado e Religião, suas implicações na sociedade humana e suas consequências, quando essas relações se tornam belicosas.
O SAGRADO SOB A ÓPTICA DO HUMANO: AS PERCEPÇÕES DO DEUS ILIMITADO A PARTIR DE SERES HUMANOS LIMITADOS.
Nos últimos anos, de forma mais acirrada, a expressão intolerância religiosa tem estado bem em voga. As religiões, que em seus arcabouços trazem diretrizes pacíficas, tem sido deturpada por pessoas que não conseguem lidar com a diversidade humana.
A capacidade humana de refletir sobre sua própria história e fazer sua própria escolha, foi um dos motivos que levaram o ser humano a evoluir, construindo seus conceitos de vida e de convivência tanto entre seus pares quanto com suas divindades.
Numa escala assustadora, podemos perceber uma verdadeira guerra religiosa, onde cada religioso quer fazer com que todo o restante do mundo compreenda que sua religião, e de mais ninguém é a certa. Desta forma, os religiosos fazem uma manipulação do Sagrado, e o constrói a partir das suas próprias realidades.
Mas o que é de fato, o Sagrado? Qual religião pode ser considerada como detentora do Sagrado? Pode o Sagrado ser manipulado em uma guerra santa, onde o que se quer é impor a crença que se acha mais adequada?
Podemos pensar sobre o Sagrado, como sendo algo visto a partir das concepções humanas. Não é o Sagrado que diz de si mesmo o que ele é, mas são as percepções humanas que dizem do Sagrado, afirmando suas condições e suas qualidades. Nesse sentido, as percepções do Sagrado são, antes de tudo, humanas e racionais.
Sendo essas percepções humanas e racionais, elas tenderão a carregar consigo as características do humano, com toda sua complexidade, incluindo nessa complexidade quer seja sua bondade e maldade. O Sagrado ganhará desta forma, as matizes humanas e será oferecido aos seres humanos a partir dessas matizes e não de fato como ele é.
Rudoff Oto afirma que:
Toda a concepção teísta, e de uma maneira excepcional a ideia cristã de Deus, tem como caráter essencial compreender a divindade como uma clara precisão e defini-la com a ajuda de predicados como: espírito, razão, vontade teleológica, boa vontade, omnipotência, unidade de essência, consciência de si e outros termos parecidos. Esta concepção da divindade corresponde, pois, à razão pessoa que o homem encontra em si mesmo sobre uma forma limitada e reduzida.[1]
Podemos perceber então, que uma é a manifestação do Sagrado, independentemente dos conceitos estabelecidos pelo ser Humano e outra e a percepção que este ser humano tem do Sagrado. Nesse sentido, o Sagrado é aquilo que o homem diz e quer que ele seja.
Esta percepção humana do Sagrado, difundida ao longo dos anos, em várias culturas e tradições religiosas, fazem do Sagrado, não um objeto de adoração, mas um objeto de manipulação.
Já é notório, através dos compêndios históricos, o quanto essas percepções do Sagrado foram danosas à própria existência e convivência humana. Guerras foram feitas em nome de um Deus, que não sublocou a nenhum ser humano esta necessidade beligerante.
A percepção própria de um povo sobre seu Deus foi, em muitos casos, a motivação para que se estabelecesse um caminho de guerra para a imposição deste pensamento religioso, mesmo que este ser supremo a quem todas as religiões chamam de Deus, não faça de fato essa distinção.
A percepção humana às manifestações do sagrado, suas características e predicados, são tidas pelo ser humano como sendo absolutos. Como absolutos, não podem ser contrariados. Desta forma, as atrocidades perpetradas pelos religiosos sejam de quais forem suas tradições religiosas, são consideradas como atos ratificados pelo Sagrado, ou de fato, pelas suas concepções do Sagrado.
Os atos cometidos por religiosos a partes de uma população que não comunga de sua fé, é estabelecido em decorrência de uma percepção errônea de que aquilo que se pensa do Sagrado, é de fato o Sagrado. Além disso, acreditam alguns que, por admitirem predicados racionais à divindade, a mesma pode ter sua essência esgotada.
Desta forma, a divindade, o Deus que se espera ser tudo sobre todos, acaba por ocupar uma posição menor do que aquele humano a quem ele deveria estar sobre. Tendo uma essência que se pode esgotar, esse ser não pode ser considerado Deus.
As conceituações do Sagrado, nas mais diversas tradições religiosas, partem de seres humanos limitados. Essas definições, entretanto, não afirmam que o Sagrado talvez seja, mas que o Sagrado é. Na visão cristã, o conceito de Deus é “Deus é Espírito Pessoal, perfeitamente bom, que, em santo amor, cria, sustenta e dirige tudo.”[2]
Como podemos notar, a conceituação cristã do Sagrado não permite qualquer tipo de subjetividade. Ao afirmar que Deus é, as possíveis divergências sobre o ser de Deus não são levadas em conta.
Diante dessa afirmação, qualquer pensamento diferente gerará um antagonismo, levando aqueles que discordam da afirmação a estarem contra aos que concordam.
Essa relação de antagonismo de fato se dá não pelo que o Sagrado é, mas por aquilo que os fiéis definem que ele é. Evidentemente, nas escrituras tanto de Judeus, quanto de Cristãos e islâmicos, há indícios dessa conceituação, entretanto, a conceituação em si é fruto de observações humanas. Além disso, há pontos na conceituação que destoam da forma de crer de outras tradições religiosas.
Se a conceituação do Sagrado fosse isenta da participação humana, seria de se esperar que fosse comum à todas as tradições religiosas. Ao observarmos a pluralidade de conceitos acerca do Sagrado, perceberemos que não há homogeneidade, pois é oriundo de uma mente finita.
Pela percepção humana do Sagrado, encontramos seres humanos que compreendem que devem estender a mão e ajudar ao necessitado, mas temos também outros seres humanos que compreendem que se vestir de explosivos e matar os infiéis é algo que o Sagrado exige e premia.
A compreensão humana do Sagrado distancia aqueles que compreendem uma realidade inerente ao sagrado: o mistério. Para Oto, as religiões que tentam explicar suas idéias acabam por “diminuir e enfraquecer a própria experiência.” Oto, ainda afirma que: “Destas ideias é que procede, não a religião, mas a racionalização da religião, tem como resultado uma teoria tão copiosa e interpretações tão plausíveis que o misterioso fica eliminado.”[3]
A revelação do Sagrado sempre teve um caminho que parte do Sagrado ao humano. Entretanto, a existência do primeiro, precede ao segundo, logo, não é possível conceber uma revelação do Sagrado a partir do humano que seja de fato eficaz.
Ao tentar sintetizar aquilo que é mistério, o humano cria um mito. A criação do mito parte de uma mente finita e que ainda não internalizou grandes conteúdos vivenciais. Por conta disso,o humano precisa nivelar o fato religioso. Esse nivelamento, segundo Otto, fará com que o fato religioso seja rebaixado a ponto de perder seu real significado.[4]
Perdendo o fato religioso seu real significado, o humano há de dar novo sentido ao que se perdeu sentido. Pensando por esse prisma, se torna possível refletir no que de fato tem sido a religião moderna e todas as suas implicações na sociedade.
O homem atual não sobrevive sem buscar sentido à sua existência. Nos tempos antigos, todos os fatos relacionados à existência humana podiam ser creditados, ora ao acaso, ora a manifestação soberana das divindades. Atualmente é preciso que se tenha sentido e motivação para uma existência.
No caminho dessa busca existencial, por vezes o homem confunde progresso com retrocesso. Na ânsia de alcançar o sentido para suas vidas, se entregam a práticas rudimentares e fundamentalistas, no que se refere as suas relações com o Sagrado. Abumansur vai dizer que:
É um movimento de retomada dos valores considerados perenes e, portanto verdadeiros, é uma busca de definição é rigor. Ressurgem os fundamentalismos de todas as colorações, as certezas e os integrismos. É a afirmação de identidades pessoais e grupais a despeito de tudo e de todos. É o individualismo que encontra, nos pequenos grupos, o espaço de afirmação de sua identidade, de reconhecimento e de sua diferença.[5]
A Europa convulsionada, sendo, do seu ponto de vista, invadida por pessoas das quais já não quer mais ter contato, revela uma dado assustador. Vindo de seus países, com culturas plurais, os refugiados querem lograr um só intento: sobreviver. Entretanto, ao que se demarca nas reações controversas dos países europeus, a visão destes é que aqueles estão querendo entrar para desestabilizar suas existências.
Em contrapartida a esse movimento migratório moderno, encontramos nos países de origem, grupos radicais que, em nome de uma fé, de um Deus e de uma religião, persegue, tortura e mata seus próprios similares.
A este tipo de ação, chamam-na revolução. Todavia, revolução no sentido mais estrito da palavra é transformação profunda, ao contrário do sentido mais aplicado a estes casos, tal como revolta. Esta revolução ou esta revolta tem caráter impositivo, de não permitir ao divergente a possibilidade de divergir. A partir desse tipo de revolução, tenta-se implementar ou, em ultima instância impor o tipo de fé que se acha a mais acertada, o deus mais poderoso e a religião que se embrenha com a atividade do Estado. Balandier, citado por Abumansur, vai dizer que:
As respostas revolucionárias crêem poder inventar sentido a partir da ruptura radical com a ordem estabelecida e da adesão incondicional a um projeto de remodelação profunda da sociedade na qual a política torna-se objeto de fé e, em decorrência, as relações entre as pessoas expressam-se em termos de fidelidade. […] Da esperança revolucionaria, ficou sua face mais repulsiva, a violência.[6]
A palavra terrorismo tem sido aplicada geralmente a grupos, sobretudo ligados a religião islâmica, entretanto, queremos dar a esta palavra todo peso que ela traz em si mesma, no sentido de denunciar os diversos tipos de terrorismos manifestados pelo humano em nome do Sagrado, ou, para sermos coerentes, com o que se diz do Sagrado.
Nesse sentido, ao ampliarmos a definição de terrorismo, como sendo uma dominação pelo terror, encontraremos em outras confissões religiosas, que não sejam somente as de tradição islâmica, este arcabouço de dominação, até mesmo nas religiões de cunho pacifista como, por exemplo, o cristianismo.
Uma rápida olhada para a história da igreja cristã, seja no momento pré-reforma ou no momento pós reforma, e encontraremos indícios de que não foram (e são) somente as religiões tidas como fomentadoras de movimentos radicais que promovem o terrorismo.
Sob esta perspectiva, precisamos lançar um olhar mais acurado sobre a forma como o ser humano lida com o Sagrado e como ele fundamenta sua crença, sobretudo em relação aquele que não acredita da mesma forma.
O que se pode perceber, de fato, é que a fé tem se tornado não objeto da devoção ao sagrado, mas um dos muitos mecanismos de repressão ao ser humano e às suas liberdades, de modo que, ao pensar diferente, seja condenado por aquele que o julga infiel, sendo o divergente alvo de todo tipo de ataque e sacrifício.
Podemos compreender, então que, o terrorismo, seja ele incitado por qualquer tipo de tradição religiosa, é somente ataque e sacrifício, enquanto que em outros tempos já foi usado como fonte de mudança.
É preciso então que se faça uma avaliação sobre o que de fato é compreendido como o Sagrado. É sabido que, nas grandes religiões estabelecidas, a pessoa de um ser supremo, pode agir de forma brutal, sem, contudo ser considerado um ser supremo maléfico. Nesse sentido, quaisquer manifestações de brutalidade e violência, seja em que âmbito for, revelarão um deus menor que aquele que é expresso pelas várias tradições religiosas.
Neste ponto, temos o surgimento de um Sagrado manipulado. Um sagrado que se deixa ser usado para justificar os atos dos humanos. Dessa forma, temos um sagrado abusado pelo humano.
Em conseqüência disso, o Sagrado ganha a forma que o religioso quer que ele tenha e não a forma que ele de fato tem. Sendo assim, podemos concluir que sob esta óptica inversa, o humano domina o Sagrado.
Desta forma, a religião perde seu sentido, pois devendo ser ela um organizador de um sistema de solidário de crenças[7], ocupa-se de impor uma crença que só se solidariza com seus pares.
Para os extremistas religiosos, das diversas religiões existentes, a percepção do Sagrado e do profano é simplesmente uma questão de ótica. Sendo assim, não deveria gerar os transtornos que geram, tendo em vista que a percepção humana nunca será homogênea. Durkeim compreende que as coisas sagradas são ambíguas e que dependendo da forma como são tratadas adquirem um caráter de santo ou profano.[8]
A convivência entre os religiosos, que deveria ser pacífica, sobretudo quando se pensa a partir do que seria a Mente do Sagrado, se torna insustentável. Todas as religiões, se apropriando de suas divindades, relegam as outras a um patamar herético e digno de toda danação infernal.
A pergunta que precisa de uma resposta é: pode ser chamado de Deus, alguém que incita seus seguidores a sacrificarem seus iguais? A resposta que nos parece ser mais adequada é que de fato não é Deus, mas a representação internalizada daquilo que o homem compreende como Deus. Há, nesse sentido, os que matam em nome de Deus, mas que na realidade, matam em nome do ser aterrorizante que definiram como sendo o seu deus.
Outro ponto importante a abordar, é que a concepção de Deus é norteada pela época em que essa concepção é estabelecida. Adolphe Gesché afirma que toda questão sobre Deus é datada e situada,[9] e que sendo assim, não enxergamos da mesma forma como outros povos enxergaram em outro tempo. Essa concepção recebe ainda com valores culturais de suas épocas.
A forma radical e intolerante como algumas tradições religiosas tratam as pessoas que não se alinham em fé com elas, demonstram uma percepção de verdade única. A verdade se torna então um objeto de manipulação.
Discutir a verdade sob o ponto de vista de uma perspectiva acerca do Sagrado é discutir uma das verdades possíveis sobre o Sagrado. Essa discussão sempre será infrutífera, quando a intolerância entre em voga, não deixando que as verdades, sob vários pontos de vistas e tradições religiosas sejam admitas.
O discurso religioso seja ele qual for, está fadado a ser um discurso vazio. Rubem Alves, em sua obra O que é Religião, enfatiza sobre o discurso religioso:
Enunciado de ausências, negação dos dados, criação da imaginação: só pode ser classificado como engodo consciente ou perturbação mental. Porque, se ele “não contém qualquer raciocínio abstraio relativo à quantidade e ao número”, “não contém raciocínios experimentais que digam respeito a matérias de fato e existência”, “não pode conter coisa alguma a não ser sofismas e ilusões”. Pior que enunciado de falsidades, discurso destituído de sentido.[10]
Partindo dessa assertiva sobre o discurso religioso torna-se mais fácil compreender que ele não se afirma a não ser sob a perspectiva de quem o discursa. Nesse sentido, o discurso que se faz das ações em nome Deus, como no caso de cristãos ou de Ala, como no caso do islamismo, é uma elucubração própria de quem os defende, não sendo, portanto, admissível como opção plausível para quem não defende a mesma ideia.
É importante salientar que a expressão intolerância religiosa, estando em voga nos dias atuais, quer seja a partir daqueles que se sente atingidos por ela, quer seja por aqueles que, em nome do Estado, legislaram contra ela, denota claramente que o caminho de convívio pacífico entre as diversas formas de manifestações religiosas e de lidar com o Sagrado, já não é algo pacífico.
Havendo uma expressão que exprime repulsa e uma lei que garante a punição para a prática, haverá também a percepção de que algo não estava caminhando com fluidez e liberdade e, por conta disso, se fez necessário uma intervenção, tanto como posicionamento da sociedade, quanto como lei estabelecida.
Consideremos os últimos acontecimentos na Europa, que, estando convulsionada por questões relacionadas aos refugiados oriundos de países cuja religião se misturou com a forma de administrar a nação. Aliado a toda a essa problemática, o mundo perplexo observa a fúria de radicais que matam em nome de seu Deus, ou da percepção que fazem dele.
Que tipo de separação será necessário que se faça diante de situações beligerantes como esta, considerando que os radicais acreditam que o que fazem são atos de uma relação com o Sagrado?
Na quadragésima segunda Surata, do texto sagrado da religião abraçada pelos terroristas que ceifaram vidas na França (e em outros lugares, inclusive entre seus pares), encontramos a declaração de que uma mesma divindade prescreveu uma só religião, fazendo menção inclusive ao Cristo dos cristãos.[11]
Sendo assim, parece-nos um contra censo que uma tradição religiosa queira matar parcelas da população que professem a fé no Sagrado, a partir de outras manifestações religiosas que não a deles.
Nesta disputa pelo poder do Sagrado, encontramos manifestações religiosas antagônicas, que entram em embate o tempo todo, revelando-se de fato não uma religião como se entende que ela seja, mas uma distorção do sentido do que é religião.
De fato, essa disputa pelo poder do Sagrado não está restrito às religiões consideradas pelos ocidentais como religiões de terroristas. Quando nos referimos aos jihadistas como fundamentalistas, não podemos nos esquecer que o cristianismo, em grande parte do mundo é também fundamentalista, mesmo que não seja jihadista, ao menos no sentido de se explodirem.
A inadequação da palavra por religiosos ocidentais, contra religiosos médio-orientais, acaba por criar um estigma de certo versus errado, onde se evidencia que o certo é o pensamento ocidental, civilizado e com estruturas religiosas mais flexíveis. Pensando desta forma, é perfeitamente natural que se marginalize aquele que não faz parte deste contexto religioso.
É preciso retroceder um pouco no tempo e perceber que o conceito de fundamentalismo não foi cunhado, em princípio para ser utilizado contra religiões médio-orientais. Em seu artigo “Coexistência cultural e “guerras de religião”, José Augusto Lindgren Alves, nos esclarece:
A palavra, nas línguas ocidentais, vem do entendimento puritano anglo-americano, divulgado nos Estados Unidos, de que os crentes devem se ater aos “fundamentos” da fé cristã: a Bíblia e suas “narrativas fundamentais”. Sua origem remonta ao século XIX e à reafirmação de dogmas contra o chamado liberalismo cristão e o Iluminismo em geral. O fundamentalismo evangélico atual, protestante ou católico, manifesta-se mais visivelmente na defesa do “criacionismo” bíblico, por oposição ao evolucionismo científico darwinista.[12]
Podemos perceber então, que o termo fundamentalista é, em certo sentido, ambíguo. Para os religiosos do ocidente, possui em seus ambientes de fé, um sentido positivo, entretanto, no ambiente de fé do médio-oriente, fundamentalista é, em última análise, aquele que mata pelos seus fundamentos.
Novamente temos aqui uma situação paradoxal, onde duas ou mais manifestações religiosas contradizem a própria essência do ser religioso, que o impulsiona para um relacionamento com o Sagrado, que em última instância é Sagrado para os quatro cantos da terra, não fazendo distinção da posição geo-político-religiosa em que se encontra o ser existente e o que este pensa do Sagrado.
Pode então o Sagrado ser apontado com responsável pelas calamidades espalhadas pela terra convulsionada? Cremos que a resposta é negativa, tendo em vista que se ele assim o fosse, as calamidades seriam sempre de um só grupo, que se autodenominaria como detentor das verdades do Sagrado, contra todos os outros que não seriam da mesma forma.
As guerras religiosas, as perseguições pelo poder religioso, as mortes em nome do Sagrado apontam para um caminho diferente desse. Houve (e ainda há) mortes em nome do Sagrado promovida pelo cristianismo, religião que em seu conceito teológico mais abrangente deveria ser de paz, de acolhimento e congraçamento entre todos os homens e mulheres.
Para contrapor essa bipolaridade ocidental versus médio-oriental, as religiões desse contexto deveriam seguir a mesma linha de apresentar o Sagrado, sob uma perspectiva de alguém que existe para doar vida. De fato, cristãos e muçulmanos conviveram durante muito tempo sem essa guerra religiosa.
Ao se fazer comparações entre alguns textos do cristianismo e textos do islamismo, tidos até como incentivadores da morte dos inimigos de outras religiões, é possível perceber algumas similitudes. Comparemos, pois a Sura 4.74 com o Apocalipse 2.10:
Que combatam pela causa de Deus aqueles dispostos a sacrificar a vida terrena pela futura, porque a quem combater pela causa de Deus, quer sucumba, quer vença, concederemos magnífica recompensa (sura 4.74).[13]
Nada temas das coisas que hás de padecer. Eis que o diabo lançará alguns de vós na prisão, para que sejais tentados; e tereis uma tribulação de dez dias. Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida. (Apocalíse 2.10)[14]
Não fossem anotadas as fontes dos dois textos e os mesmos poderiam ser lidos como complementares. O primeiro trata da luta pela causa de Deus, a ponto de sacrificar a vida, com a possibilidade registrada na narrativa sagrada de que, assim sendo, a recompensa futura está garantida. O segundo fala da tentação do diabo, inimigo do cristianismo, que colocará os fiéis por um pouco de tempo em sofrimento e convida ao fiel para uma fidelidade a ponto de morrer e ter como recompensa uma coroa.
Como podemos perceber, e como foi possível fazer nessa interpretação desassociada das regras de hermenêutica e exegese, é possível dar uma conotação pacifica, colocando em pé de igualdade, textos tidos como excludentes, sendo o texto do Alcorão difundido como base para as guerras santas.
Isto faz-nos entender que a interpretação que se faz do Sagrado é antes de tudo, pessoal e que esta interpretação, e não o Sagrado em si mesmo, é que promove aquilo que conhecemos como ações beligerantes tanto de um lado quanto o outro.
Em outro texto podemos comparar:
Combatei-os! Deus os castigará, por intermédio das vossas mãos, aviltá-los-á e vos fará prevalecer sobre eles, e curará os corações de alguns fiéis, E removerá a ira dos seus corações. Deus absolverá quem Lhe aprouver, porque é Sapiente, Prudentíssimo. (sura 9.14,15).[15]
Serão envergonhados e humilhados todos os que se inflamam contra ti. Serão reduzidos a nada e perecerão aqueles que querelavam contigo. Tu os procurarás, e não os encontrarás, os que te combatiam; serão reduzidos a nada, serão aniquilados aqueles que te faziam guerra. (Isaias 41 11,12)[16]
No primeiro texto, há uma afirmação para o combate, seguido de uma certeza de que Deus castigará os combatidos, fazendo com que os combatentes prevaleçam e ainda uma promessa de que alguns combatidos teriam seus corações curados e absolvidos. No segundo texto, há uma relação parecida entre combatentes e combatidos, entretanto não há clemência para os combatidos, que serão reduzidos a nada.
Neste segundo bloco de textos sagrados, parece-nos que o texto que dá sustentação à ações terroristas é o texto sagrado judaico-cristão, ao passo que o texto sagrado dos mulçumanos denota certa clemência por parte do Sagrado, até mesmo com os inimigos de seu povo.
Há ainda uma série de textos que poderiam ser citados exaustivamente, onde se poderia dar a cada um deles a interpretação que julgássemos necessário, transformando o Sagrado percebido pelos seguidores do islamismo como a melhor opção e fazendo com que a percepção do Sagrado feita pelos seguidores do cristianismo não fosse a melhor opção.
Evidentemente, não nos cabe aqui nestas linhas, fazer um trabalho acurado de interpretação de narrativas sagradas, dispondo de todos os elementos científicos de tradução, exegese, hermenêutica, analisando os textos pelo método histórico-critico, mas a intenção foi mostrar que é possível sim uma interpretação das narrativas sagradas a partir da mente humana e não a partir da realidade do Sagrado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste artigo, procuramos evidenciar que as percepções do Sagrado por parte do humano são de caráter pessoal e não justificam, sequer explicam que uma história de atrocidades perpetradas em nome do Sagrado, tenha ele o nome que tiver, possa ser admitida como fruto dessa relação.
Procuramos demonstrar no artigo, que os conceitos estabelecidos em religiões tidas como antagônicas, como cristianismo e islamismo, são na realidade parte da vivência de seus seguidores e, portanto, não deveriam servir de sustentáculo para as afirmações acerca das divindades seguidas pelos fiéis destas duas grandes religiões monoteístas.
Verificamos também, que a divisão bi polarizada de mundo religioso se transforma em mais um mecanismo de fomentação de ódio, repressão de discurso e estabelecimento de terror, seja através de sacrifícios de vidas humanas ou do cerceamento da liberdade de escolha, inerente ao ser humano.
Consideramos, finalmente, que o Sagrado é o que é, e sendo dessa forma, não é no mínimo inteligente considerá-lo como causa principal de ações maléficas de seres humanos contra seres humanos.
O homem sempre criará gaiolas de prata, chamadas de religião, na tentativa de aprisionar o belo pássaro livre, chamado Deus.[17] E nesta prisão-religião, O Sagrado será tudo, menos o Sagrado.
REFERÊNCIAS
Livros
ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Edições Loyola, 2004.
ABUMANSUR, Edin Sued. As moradas de Deus. São Paulo: Fonte Editorial.
GESCHÉ, Adolph. Deus para pensar Deus. São Paulo: Paulinas.
LANGSTON, A.B. Esboço de Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: Editora Juerp
OTTO, Rudolf. O Sagrado. Rio de Janeiro: Edições 70
Sites
ALVES, Rubem. O que é Religião. Disponível em <http://files.direito-pucminas.webnode.com.pt/200000356-a6e11a7db0/Rubens%20Alves%20-%20O%20Que%20%C3%A9%20Religi%C3%A3o.pdf> Acesso em 25/11/2015
ALVES. José Augusto Lindgren. Coexistência cultural e “guerras de religião”. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092010000100003&lang=pt > accesso em 28/11/2015
Bíblia
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
[1] OTTO, Rudolf. O Sagrado. p. 9.
[2] LANGSTON, A.B. Esboço de Teologia Sistemática. P. 19
[3] OTTO, Rudolf. O Sagrado. P. 40
[4] Idem.
[5] ABUMANSUR, Edin Sued. As moradas de Deus. p. 147.
[6]Idem.
[7] ABUMANSUR, Edin Sued. Op. Citp. 151
[8] Ibidem, p. 152.
[9] GESCHÉ, Adolph. Deus para pensar Deus. p. 15.
[10] ALVES, Rubem. O que é Religião. P. 22. Disponível em <http://files.direito-pucminas.webnode.com.pt/200000356-a6e11a7db0/Rubens%20Alves%20-%20O%20Que%20%C3%A9%20Religi%C3%A3o.pdf> Acesso em 25/11/2015
[11] No texto do Alcorão, encontramos na quadragésima segunda Surata a descrição: “Prescreveu-vos a mesma religião que havia instituído para Noé(1443) , a qual te revelamos, a qual havíamos recomendado a Abraão, a Moisés e a Jesus, (dizendo-lhes): Observai a religião e não discrepeis acerca disso(1444) ; em verdade, os idólatras se ressentiram daquilo a que os convocaste, Deus elege quem Lhe apraz e encaminha para Si o contrito.” Disponível em <http://www.culturabrasil.org/zip/alcorao.pdf> . Acesso em 26/11/2015. Parece-nos claro que, até mesmo para o maior profeta, o Jesus dos cristãos não era uma pessoa causadora de divisões.
[12] ALVES. José Augusto Lindgren. Coexistência cultural e “guerras de religião”. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092010000100003&lang=pt > accesso em 28/11/2015
[13] Alcorão traduzido para o português. Disponível em <http://www.centroislamico.com.br/viewpage_kuran.php?page_id=23> Acesso em 28/11/2015
[14] Bíblia de Jerusalém.
[15] Alcorão traduzido para o português. Disponível em <http://www.centroislamico.com.br/viewpage_kuran.php?page_id=23> Acesso em 28/11/2015
[16] Bíblia de Jerusalém.
[17] Num dado momento da história de Rubem Alves, ele escreveu para sua filha uma estória sobre um Pássaro Encantado e uma menina. Pássaro e menina se amavam. Mas sempre chegava o momento quando o Pássaro dizia: “Preciso ir”. A menina chorava e dizia: “Não vá. Nós nos amamos tanto!” O Pássaro respondia: “Eu preciso ir para ter saudades. Porque o meu encanto nasce da saudade!” E partia. A Menina, então, teve uma ideia perversa: engaiolar o Pássaro para que ele nunca mais partisse. E assim ela fez. Quando o Pássaro voltou, cheio de estórias para contar, cheio de penas de novas cores, enquanto ele dormiu, ela o engaiolou numa linda gaiola de prata. Ao acordar o Pássaro deu um grito de dor. “Menina, vou perder meu encanto. Vamos perder o amor!” E assim aconteceu. Foram-se as cores. Foram-se as estórias que ele contava. Foi-se o amor.
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