Cidadania: eu pratico, e você?

O Espírito do Senhor é sobre mim, Pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados de coração,
A pregar liberdade aos cativos, E restauração da vista aos cegos, A pôr em liberdade os oprimidos, A anunciar o ano aceitável do Senhor. Lucas 4:18,19

Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; Efésios 2:19

Cidadania: eu pratico, e você?[1]

O conceito de cidadania surge no período clássico da Grécia, e fazia referência aos direitos relativos ao cidadão. Cidadão é o indivíduo que vivia nas polis (cidades).

Na Grécia, poucos podiam ter o título de cidadão. Somente alguns homens. Mulheres, crianças, escravos e estrangeiros não podiam ser cidadãos. Mulheres não eram consideradas seres pensantes. Escravos não eram considerados seres humanos. Os estrangeiros não podiam ser cidadãos por serem estrangeiros.

A cidadania na Grécia é uma conquista que diz respeito à participação do cidadão ao processo político e governamental das cidades. Nesse sentido, quem era cidadão podia influir nas decisões políticas das cidades.

A cidadania é formadora de identidades. Nos primeiros passos da igreja cristã, houve uma crise eclesiástica, criticada por Paulo e consistia no partidarismo cristão que se formava. Os cristãos estavam se dividindo e uns se diziam de Paulo, outros de Apolo, formando assim uma identidade que os particularizava. Toda identidade é por si excludente de outras identidades.

A cidadania surge como conceito para justificar uma identidade, ou uma identificação de alguém com um grupo específico. Viver no coletivo da cidade exige de quem vive que se tenha uma cidadania.

A princípio a cidadania exclui quem não faz parte do grupo de cidadãos. A cidadania grega excluía não só quem era grego (mulheres, escravos, estrangeiros), mas excluía os outros povos. Era cidadão das pólis (cidades), quem habitava as polis.

A cidadania sob o ponto de vista grego é constituída a partir da democracia (δημοκρατία). Sendo a democracia o governo do povo, o cidadão era quem podia exercer a democracia. Não é possível desvincular a cidadania grega da democracia grega.

Avancemos um pouco no futuro e vamos encontrar um outro tipo de percepção do cidadão: A revolução francesa. Na revolução francesa há uma modificação do pensamento a respeito do cidadão. Ao contrário da excludente cidadania grega, a revolução francesa apregoa seu tríplice lema: “Liberté, Egalité, Fraternité”. (Liberdade, Igualdade, Fraternidade).

Deste modo, para os franceses, o pensamento de Liberdade Igualdade e fraternidade, modifica a forma de se enxergar o cidadão e a sua cidadania.

Um filósofo muito importante para o pensamento sobre o cidadão em sociedade foi Jean Jaques Rosseau. Filósofo suíço, Rosseau afirmava que o homem não era mau em si mesmo. Não acreditava que o mal estava no pecado original, mas na vida em sociedade. Era a sociedade que transformava homens bons em homens maus. Logo, o que precisava ser corrigido não era o homem, mas a sociedade. Esta correção, segundo Rosseau deveria ser feito através da política. Rosseau acreditava ser possível estabelecer uma sociedade ideal, sendo sua assim sua ideologia uma grande influência na concepção da revolução francesa.

Além da Liberdade, igualdade e fraternidade, a revolução francesa traz consigo a declaração de direitos do homem e do cidadão, que define direitos individuais e coletivos do Homem, não só em território francês, mas em qualquer lugar e em qualquer tempo.

No período colonial, das grandes navegações, a cidadania está restrita aos homens bons. Homem bom, no período colonial, fora do Brasil significa ser branco e dono de terras.

No Brasil, essa característica de cidadania para apenas homens bons, faz com que a maior parte dos habitantes do Brasil e no Brasil não possa ser cidadãos. Quem não era “homem bom”, não era cidadão e não tinha os direitos que um cidadão podia ter.

No Brasil colônia, isso gera outro problema, pois se a cidadania está restrita a poucos homens, a lei também não alcança a todos os homens.

Para os cidadãos, as leis não se aplicavam, pois ser cidadão era em última análise ser um homem bom, e um homem bom não podia ser atingido pela lei.

Essa cidadania brasileira excluía os pobres, os nativos, os escravos e as mulheres. Logo, nem todos eram capazes de ter o título de cidadão. Sendo assim, nem todos podiam ter direitos de cidadão.

Os escravos, não possuíam o direito a cidadania. Mesmo com o advento da Lei áurea, e conseqüentemente, o fim da escravidão, o negro não podia ser cidadão.

A lei que libertou os escravos traz consigo um grande problema. A liberdade conseguida, não era uma conquista, mas uma outorga. Dizendo de outra forma, não se era livre por se ter conquistado a liberdade, mas porque alguém (Estado) decidiu que os escravos seriam livres.

Este tipo de ação do Estado, também acontece com todos os direitos sociais adquiridos por força de lei. Em última instancia, o que deveria ser uma conquista, de fato não é, pois é limitado a quem outorgou esta “conquista” por meio de uma lei.

Somente na constituição de 1934, as mulheres conseguem o direito de votar. Em termos históricos, somente ontem. Esta ação por força de lei coloca a mulher em posição de cidadã brasileira.

Hoje a cidadania é mais que direito de votar. Cidadania consiste em direitos sociais, proteção ao idoso, adolescente, criança. Não é apenas direito de liberdade de expressão, mas pluripartidarismo, direito a lei, liberdade de imprensa, direitos iguais entre as pessoas, direito a saúde. Não ter um sistema de saúde decente fere a minha cidadania.

Influenciada pela experiência da declaração dos direitos do homem e do cidadão, os países aliados, após o término da segunda guerra mundial, decidem promulgar a declaração universal dos direitos Humanos. Para fazer parte da ONU, um país tem que ser signatário à declaração universal dos direitos humanos.

Em seu primeiro artigo, a DUDH declara “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” E em seu terceiro artigo diz “Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”

No artigo vigésimo quinto está escrito que “1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. 2.A maternidade e a infância têm direito a ajuda e a assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozam da mesma proteção social.”

No Artigo vigésimo sexto assegura que “1.Toda a pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. O ensino técnico e profissional dever ser generalizado; o acesso aos estudos superiores deve estar aberto a todos em plena igualdade, em função do seu mérito. 2.A educação deve visar à plena expansão da personalidade humana e ao reforço dos direitos do Homem e das liberdades fundamentais e deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais ou religiosos, bem como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas para a manutenção da paz. 3. Aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar aos filhos.

Aqui temos instaurado um problema de cidadania:

Países como a China, Arábia Saudita e Brasil, signatários da declaração de direitos humanos, concordam que todos são iguais. O que de fato não é. Não há saúde bem estabelecida, educação fundamental de qualidade, segurança, entre outros, logo, não estamos bem enquadrados nas diretrizes de cidadãos estipulado pela declaração dos direitos humanos.

Para ser um cidadão de acordo com as diretrizes estipuladas na declaração dos direitos humanos é preciso respeitar o que lá está escrito. É ai que precisamos entender bem o que é ser um cidadão.

Como cidadão eu posso ter a opinião sobre tudo e sobre todos, desde que eu não fira os direitos fundamentais descritos lá na declaração universal dos direito humanos.

Pensando sobre o que é ser cidadão, sob a perspectiva da declaração dos direito humanos, precisamos refletir sobre dois aspectos:

  1. Eu sou cidadão em toda plenitude?
  2. Eu pratico a cidadania?

De porte dessas perguntas, como cristãos, precisamos pensar no dualismo que por vezes criamos. Nos auto-intitulamos cidadãos dos céus, o que de fato não é um problema em si. E nos classificamos também como cidadãos brasileiros, e por análise da declaração dos direitos humanos, cidadãos do mundo. Mas quando observamos a saúde, educação, segurança, entre outros direitos do ser humano, sobretudo aqui no nosso país, mas não só aqui, essa dualidade pode ser demasiadamente ruim.

Como cidadãos dos céus, não temos problemas com nada do que descreve a DUDH. No céu não há problema com os hospitais, porque lá não haverá morte, portanto, não haverá doença. No céu não haverá problema de educação, pois conheceremos o que Deus conhece. No céu não haverá problema de transportes, pois um corpo glorificado não está restrito da mesma forma como um coro carnal.

Mas esse mesmo cidadão dos céus é cidadão da terra. Da terra injusta, da terra, sem educação da terra, sem saúde, da terra violenta.

Se olharmos para o modelo de cidadão descrito por Jesus no sermão da montanha. Talvez tenhamos uma perspectiva diferenciada sobre a questão dualista cidadão deste mundo e cidadão dos céus.

Pensemos então em cidadão do Reino de Deus:

No sermão do monte, os pobres de espírito são considerados felizes. A palavra pobre no sermão da montanha se torna uma matiz moral. Esse ser pobre de espírito é aquele que está disponível para o Reino de Deus. Estar disponível para o reino de Deus é estar disponível para um reino de Justiça, onde os direitos fundamentais são respeitados. Ser pobre de espírito, não significa não ter dinheiro. Deus dedica o seu Reino aos pobres de espírito, e essa preferência pelos pequenos é a marca da liberalidade soberana de Deus. É um convite para esperar tudo da graça de Deus pelos infelizes deste mundo, sejam eles ricos ou pobres, contanto que sejam pobres de espírito.

Quando o sermão chama de felizes os pobres de espírito e direciona a eles o Reino dos céus, podemos perceber implicitamente uma questão maior do que igualdade. Temos uma questão de justiça.

Praticar a cidadania sob a ótica do Reino dos céus é praticar uma cidadania de justiça e não de igualdade. Sendo assim, a perspectiva da cidadania do Reino dos céus é superior a qualquer conceito de cidadania.

E de novo temos duas perspectivas-escolhas:

  1. Espero que o reino dos céus seja estabelecido nos céus, onde não há injustiça.
  2. Estabeleço a justiça do reino dos céus aqui na terra.

Dependendo da escolha que eu fizer, precisarei assumir as conseqüências da escolha.

A primeira chama-se morte, ou em alguns casos arrebatamento. Cessado esta vida, seremos introduzidos no ambiente dos céus, onde não há injustiça.

A segunda chama-se pratica da cidadania, mas esta exige que façamos aqui na terra, enquanto vivos, lutando pelos nossos direitos e cumprindo nossos deveres como cidadãos.

Talvez seja a segunda parte desta minha última frase que empaca a questão da cidadania. Para ser cidadão pleno, precisamos ter garantidos os nossos direitos mais fundamentais, mas precisamos cumprir com nossos deveres.

Queremos nossos direitos, mas por vezes, tememos nossos deveres.

Tal como a cidadania terrena, a cidadania do Reino dos céus tem seus direitos e seus deveres. O cristão que olha para a injustiça social, a carência do básico para o ser humano viver e não acha que isso precisa ser mudado, precisa rever seus conceitos sobre o ser cristão.

Que tipo de cidadania, estamos vivendo como cristãos? Que tipo de influência somos no mundo a partir daquilo que fazemos para que a justiça social deixe de ser um incomodo que ainda levante questionamento do tipo: “será que a prática da justiça social não nos equipara a comunistas, marxistas e outras ideologias?”

Não há como ser cidadão do Reino de Deus, nos esquivando de ser cidadão do reino deste mundo.

Como cristãos, precisamos avaliar até que ponto nossa relação com a humanidade é suficientemente eficaz a ponto de lhe assegurar direitos básicos de cidadania. Deixar que a cidadania seja assegurada por força da lei, não é conquista, é limitação desta cidadania.

Se continuarmos vivendo em um dualismo mundo versus igreja, céu versus terra, material versus espiritual, e continuarmos nos abstendo de ter uma participação efetiva na vida social, econômica e política do país, continuaremos a ter uma cidadania de segunda categoria, gerenciada por alguém que nos concedeu essa cidadania e não por termos uma cidadania fruto de uma conquista.

O que podemos fazer então? Que atitudes podemos tomar para garantir o básico para o ser humano que interage conosco. Não podemos fazer muito, é certo, mas podemos fazer a nossa parte.

Quero compartilhar com vocês, um texto, de uma pessoa que resolveu fazer a sua parte diante de uma carência de algo que é fundamental par ao ser humano que é o bem estar na alimentação. Essa pessoa não resolveu a questão da fome do mundo inteiro, sequer da fome da vida toda de uma pessoa, mas ela fez o que estava ao seu alcance, no momento da necessidade. O texto chama-se:

Eucaristia com empadão e refresco de maracujá

No posto de gasolina,
um desvalido com fome
me pede respeitosamente
que lhe arrume algo para comer.
Não pediu-me dinheiro.
Sentindo fome
Me disse: “por favor, pode me comprar um pão?”
Eu que já havia saciado a fome matinal
vi perto de nós um vendedor:
“Um salgado e um refresco por um Real”.
Aproximei-me do vendedor,
comprei o lanche em dobro.
O moço, mesmo com muita fome
antecipou-se a dizer:
“Um só moço, já mata minha fome”.
Insistir por dois.
Levei o moço para uma mesinha,
forrei alguns guardanapos
e arrumei o café da manhã
em forma de salgado e suco.
Quantas vezes temos isso
e não percebemos o valor?
Assentado a mesa,
antes de comer fiz uma proposta:
– Vamos agradecer a Deus
pelo alimento à nossa disposição?
Timido, ele insiste em dizer
que não sabia o que era orar.
Sem desistir o convidei
A repetir comigo algumas palavras de Agradecimento.
Ele o fez e no fim de tudo
começou a chorar.
E disse em meio a um suspiro:
“Se o senhor quiser, pode levar o lanche
o que eu ganhei é maior que o lanche.”
Parti o salgado, dei graças ao Pai
Lembrando de quando o filho disse
“tomai, comei, esse é o meu corpo partido por vós”
Partido pelos que sofrem,
pelos famintos,
pelos desolados,
pelos que se alimentam de dores
e bebem das suas próprias lágrimas.
Peguei o refresco, e agradeci também por ele.
Nem pão, nem sangue, nem vinho,
mas o suficiente para ajudar
alguém a ter sua necessidade básica suprida
e além disso, anunciar a morte do Cristo
até que ele venha.
O que eu fiz, pode ter feito
pouco efeito no corpo do homem,
mas creio que fez grandes mudanças
na alma e no espírito,
e se eu não fizesse o que foi feito
eu não teria a comunhão
com alguém que precisa
da comunhão do Pai.

“Se você não pode fazer por todos, faça por um”

[1] Brites, Ronildo. Palestra proferida ao Ministério de Família, da Primeira Igreja Batista do Parque Anchieta – Rio de Janeiro – RJ – em 10 de julho de 2016.

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